Faculdade de Medicina da UFRGS

O Olfato no Rio Grande do Sul

Os médicos sabem "que a liberdade mais apreciada pelo homem é a do nariz". Esta assertiva é valida para os problemas obstrutivos que impedem o transito da corrente aérea como tambem para o conteudo olfativo de que esta impregnada. O olfato e sua problemática estimulativa no Rio Grande do Sul apresentam interesse historico e cientifico. Os epitélios neurossensoriais dos orgãos dos sentidos adaptam-se com facilidade aos estimulos continuos e dificilmente aos intermitentes. Todos os efluvios fetidos, infernalizando as populações, tem e tiveram emitencia deste tipo, dai sua importancia. A intermitencia não permite a habituação, e ocasiona em cada aparecimento do efluvio odorifico a reação nauseante, e o comportamento no sentido de libertar o nariz da fonte fetida. Historicamene o estudo das emanações indesejaveis permitem analisar a evolução industrial do RGS. e ser mais um parametro para avaliar a economia. Na época do aproveitamento do couro do século dezoito escrevia Azara e John Muller: "que a vacaria embora fosse um esporte para os gauchos era coisa brutal", apos retiradas os couros, como a carne não era aproveitada as carcaças biodegravam-se naturalmente. Nas areas circunvizinhas da matança ninguem se aproximava por longo tempo, face ao intenso cheiro da desintegração proteica. Muitos conflitos foram ocasionados naquela epoca devido a estas atividades dos campeadores, e era uma caracteristica da area pastoril, o encontro, em um ponto e outro, do mau cheiro das carneadas brutais. A concepção de nosso embrião olfativo mal cheiroso começou com o inicio do aproveitamento do gado. A putrefação natural das carcaças e das visceras empestavam o ambiente durante muitos meses. Geralmente esta atividade era realizada junto aos rios e distante das habitações, onde os couros podiam ser lavados e estaqueados. Desde 1780 uma nova etapa fundamental para a economia desenvolveu-se com a produção intensa de efluvios fetidos: as charqueadas.
O salgamento da carne verde e sua secagem no sol, ocasionaram uma prospera industrialização no Estado e nas Republicas do Prata. O charque era a proteina básica e barata para alimentar os escravos no século dezenove, e o principal produto exportado pelo RGS. A maioria das cidades do sul e de todo Estado giraram da atividade das charqueadas. Estas industrias eram fontes de terrivel mau cheiro que perturbava a vida dos habitantes e de muito queixume junto as autoridades. Saint-Hilaire no dia 14 de setembro de 1820, afirmou ao passar pela cidade de Rio Grande, "apesar de ter cessado ha meses a matança nas charqueadas, sentia-se ainda nos arredores um forte cheiro, pode-se fazer ideia como seria na epoca das matanças. No ano de 1830 havia mais de 10 charqueadas nos limites urbanos na cidade de Pelotas. Desde a Tablada onde se negociava o gado ate os confins da cidade sentia-se cheiro intenso que em página magnifica Alcides Maya descreve: "Ao cheiro corrupto da sangueira coalhada, aos charcos, da courama nas estacas, das guampas em acervo dos estrabos, dos ventres decompostos, o gado à distancia voluteava em sobresalto instintivo, nauseado e aflito a mugir".O mesmo Saint-Hilaire ao subir o Jacui em 14 de maio de 1820, passando pela estancia do Curral Alto, escreveu sobre a charqueada ali existente: "a fase da matança havia terminado ha muito tempo, contudo a carne no chão e as visceras do gado, putrefatas, espalhavam forte mau cheiro" Em inumeros povoados gauchos, junto aos seus vilamentos funcionaram durante o século dezenove e parte do vinte grandes charqueadas. Nicolau Dreys, viajante europeu do seculo dezenove, descreveu todo o trabalho de uma charqueada e anota esta pagina curiosa "o certo é que, fora da estação da matança, uma charqueada não tem nada que repugne a vista, e sempre dizemos de estabelecimento bem administrado, nada se acha que ofenda ao olfato, não dizemos de um sibarita, mas de qualquer homem não prevenido nem efeminado". Este viajante fora prevenido sobre o cheiro que sentiria. e chamou de efeminados os que não suportavam o cheiro de uma charqueada. Em 1858, Roberto Avé-Lallement viajando pelo sul do Estado, descreve as margens do rio Pelotas; "Nas ribanceiras estendem-se estabelecimetos de carater verdadeiramente romantico, a certos respeitos, mas, o outro lado, realmente repugnante. Em toda a região ha um cheiro horrivel de carniça. Por mais aprazivel que seja o porto de Pelotas; por mais longas e retas e em parte bonitas ruas que tenha a cidade a um quarto de milha acima, neste matadouro extingue-se qualquer impressão de graça e limpeza, em toda a parte cheira mal". Em 1914, Juvenal Dias da Costa, proprietario do "Saladeiro da Serra" em Santa Maria, face as reclamações de toda a cidade contra o cheiro que sua Industria exalava, na época das matanças, solicitou uma opinião ao Dr.Astrogildo de Azevedo de como solucionar o problema. O médico estudou a situação e achando que o cheiro advinha do liquido que estravasava dos couros, das graxeiras, e dos subprodutos ao serem lavados, sugeriu que cavassem um grande poço, coberto, onde as aguas servidas se infiltrariam. O proprietario apresentou esta ideia para ser analisada pelo eng. Gustave Vauthier, diretor da Viação Férrea, ao Intendente Municipal e ao Dr. Jose Mariano da Rocha. Este último entretanto, declarou "que seria um poço typhico que iria infecionar toda a charqueada e a cidade e era preferivel não fazer nada".Mais adiante declarou "o cheiro faz mal ao nariz, mas não faz mal a saude". A verdade é que o saladeiro perturbou por mutos anos a vida pacata daquela cidade, sendo motivo de intensa polemica das paginas dos jornais, envolvendo todos os aspectos do problema, mas não conseguimos apurar como foi solucionado. Em 1869 uma firma de Pelotas ganhava um premio pelo fabrico de sabões, banha e sebo. Industrias emitentes de fumaças com cheiro de gordura queimada e muito desagradavel. Vitor Valpirio, jovem escritor pelotense, em 1874 e 75, conhecia o trabalho nas charqueadas, descreve em dois contos; "Pai Felipe" e "A Filha do Capataz" todo o ambiente daquelas industrias com suas olencias caracteristicas. Pedro Wayne na décade de 30 vivendo junto as charqueadas de Bagé, escreveu a obra classica sobre este assssnto e assim inicia a novela."Luiz nunca tinha entrado numa charqueada. Sabia apenas que era um lugar onde os passageiros dos trens baixavam apressadamente as janelas por causa do fétido insuportavel. Parecia que havia no ar, dissolvidas em amoniaco todas as catingas que existem, tão penetrantes e nauseabundas emanações exalavam". Finalmente foi implantada em nosso Estado a Fabrica de Celulose, famosa "Boregard" que imitia uma fumaça com cheiro tipico e conforme o vento ela se espraiava por toda a capital do Estado. Era o gas sulfidrico, depois de muitas reclamações foram colocados filtros adequados e resolveu o problema. Os neuro-fisiologistas demonstraram as relações intimas existentes no cerebro dos mamiferos principalmente do homem das partes perceptivas e integrativas do olfato e do lobulo limbico, tambem denominado cerebro visceral, cujo disfuncionamento origina as molestias psicossomaticas. A literatura sempre refletiu a problemática do homem e do seu ambiente. No Rio Grande do Sul atraves da sua historia o cheiro foi uma constante e sempre refletiu as etapas do processo industrial. Reynaldo Moura é o "poeta do olfato dos gauchos, descreve em suas novelas e poesias com admiraveel sensibilidade as emanações olfativas. Ao orvalho chama-o de suor: O suor azul da madrugada, torna mais lúcido o perfume dos jardins, na neblina rosada ha estrelas que parecem derramar sobre a terra umida a ternura de uma agonia aromal. No poeminha do cimento armado, usa esta imagem: "há um cheiro morno de velocidade". Tudo para o poeta tem olfato e sua vivencia voluptuosa manifesta-se em torno da percepção olfativa. Fala no "cheiro da messe, na sensação aromal da vida esparsa e do cheiro de polen. Ao interrogar a vida, perguntando: o que somos? utiliza exemplos onde sua olfação manifesta-se como atividade central de suas funções gnosicas: Por que os junquilhos, tem cheiro de carne após o banho e o feno morto nos depositos tem exalações perturbadoras não permanecem sempre acesos como as fogueiras subterraneas da vida?
A intensa vibratibilidade poetica ele a manifesta atraves do olfato e não utiliza a visão cromática como a maioria dos poetas: Os teus cabelos distantes das minhas mãos tinham o perfume dos anjos em revoada. Ao descrever o corpo de Nora, quasi nua, uma meia nudez obscena, cheiro cinico de sexo apos o banho, tudo isso agora é o meu mundo. Na novela "Um rosto noturno", utiliza o cheiro para acionar as funções mnésticas da sua cortex cerebral: no momento não pensei, mas agora procuro fixar este instante, penso nesta relação entre o cheiro e o passado, a memória olfativa, o que a mesma me sugere. sentido na sua unidade, à boca do frasco, cada perfume possui individualidade propria, nitidamente delimitada e inumana, dissociada de qualquer forma de vida. Mas sentido através da pessoa que o usa, é como um prolongamento carnal da personalidade, participada emanação de cada um. Psicoanaliticamente esta emanação pode ser coletivizada, o cheiro da industria de celulose, que intermitentemente impregna nosso ambiente inalatório, se superpõe a personalidade do estrangeiro que veio explorar nossa riqueza e poluir nossos ares. Trouxe o progresso e a destruição espoliativa, dai a solidariedade coletiva de repudio. A multidão assim a sente diz Reynaldo Moura: Depois os homens aglomerados se dilataram em multidão numa curiosidade mórbida, como um formigueiro humano. Havia no ar um cheiro de pó e suor. No "Romance do Rio Grande" usa esta expressão: "um cheiro de mulher e de vida noturna de infima classe" ou "um cheiro de sujeira humana, um cheiro de miséria entrava-me denso e gorduroso, pelas narinas. Era também o cheiro da vida que se esvai e se derramava, liquida, elo exterior de si mesmo. Na porta do meu apartamento ainda parei, escutando. Dera a volta com a chave yale.e, pela porta entreaberta estava sentindo meu proprio cheiro, o cheiro dos meus charutos, dos meus livros, do meu refugio particular, que se escapava la de dentro e vinha me receber na porta. E mais adiante; devia ter nas roupas, pelo corpo adquirido pelo contagio o cheiro imundo de fermentação humana. Suas recordações da infancia são relembradas atravez do olfato como se fossem uma aura epileptica substituindo novamente a visão cromática pela descrição do olfato das coisas."cheiro de cavalo misturado ao ar cru e vivo dos campos entardecendo" ou quando ia a fazenda, redescobria a realidade do Rio Grande. O seu cheiro, os seus silencios de solidão, o seu verde em tropel,os seus mugidos, a galopada de sua respiração infinita. A relação fisiologica intima entre o olfato e a gustação ele analisa quando descreve um velho politico gaucho: "a cuia de mate na mão, o charuto cheiroso entre os dedos e a boca". No "Romance no Riogrande", ao possuir Elzita em pleno campo, ele é epilepticamente todo olfato: "o cheiro de Elzita era o mesmo do capim pisado e do vento do campo, enquanto nos,nos cavalgavanos como dois animais, entre exclamações que pareciam curtas gargalhadas de desespero. Era isso, era bem isso o amor. Esse gostar do cheiro, esse querer estar para sempre perto, essa confusão das vidas ondulando. Cheirava meus dedos quase adormecendo. E sentia como era intima a relação entre esse profundo odor carnal e a voz escura de Elzita e seus cabelos negros e o moreno macio de sua pele". Nas manifestações limbicas do homem o cheiro desagradevel aciona nossos mecanismos agressivos, enquanto que os odores agradaveis nos trazem paz e harmonia. No decorrer de nossa evolução econômica sempre estiveram presentes as emanações fetidas de uma ou outra maneira, ao lado da beleza de nossas paisagens. Talvez isto tenha influenciado o comportamento dos nossos habitantes que são ardentes na pugna e gentis com seus semelhantes.

Um comentário:

  1. Conforme repetia minha avó, Therezinha Dias da Costa Vidal (filha de Juvenal Dias da Costa), teria advindo legislação estadual aplicável ao trabalho das charqueadas, que implicariam investimentos extras, encarecendo aquela 'indústria'. O então charqueador teria optado por vender as instalações todas e mudar-se para Porto Alegre. A saída da cidade dele consta na monografia municipal de Santa Maria como dia de festejos populares e grandes despedidas na estação de trens.

    ResponderExcluir